domingo, 26 de julho de 2009

O mundo (parte 1)

E tudo veio com um turbilhão.
Naquele dia, mal tinha eu chegado a casa, o telefone já tocava. Do outro lado da linha estava uma pessoa da qual nunca ouvira falar. Aquela voz rouca de homem questionou-me se era eu o marido de Miram, ao que respondi com ternura ao lembrar-me dela: “Sou sim”. Queria dizer-me algo pessoalmente. Dadas as indicações e a minha morada, pousei o auscultador e então comecei a cogitar. Os meus neurónios trabalhavam a mil à hora. Uma das coisas que pensei, e que assumi como facto provável, era que ela se havia metido em sarilhos, pois sempre tinha sido um pouco rebelde.
Uns breves minutos depois bateram à porta. Conversei com um senhor da polícia, o senhor Camilo, e ele percebeu como me sentia. Para que não houvesse mais suspense acabou por revelar a verdade: “Ah…A sua mulher faleceu esta manhã. O seu corpo foi encontrado no beco da Luz e já o levaram para o Instituto de Medicina Legal. Precisamos que o senhor vá lá de modo a identificá-lo.” E eu fui. Fui com o senhor Camilo.
Entrei numa sala de metal gelada e vi-a… Vi-a tão serena, tão quieta, e tão bonita!... Mas o seu tom de pele era mais amarelado, com doces tons vermelhos e azuis, e outros da combinação dos anteriores, e as suas unhas estavam negras. Pedi para segurar a sua mão. Ao tocar-lhe… ao senti-la… desatei a chorar. Fiquei de tal modo descontrolado que tiveram de me segurar pelos ombros para que saísse daquela sala, levando-me de seguida para casa.
Os meus amigos souberam da notícia e aprontaram-se a tratar do funeral. Eu contribuí com sugestões, expressando algumas das minhas vontades e das vontades dela.
A cerimónia foi simples, comovente, repleta de conhecidos e menos conhecidos. Horas depois, o seu corpo repousava já sob as terras férteis da nossa cidade.
Passados dois meses recebi o relatório da autópsia. Ela havia falecido com uma overdose de uma droga qualquer. Achei tão estranho… Questionei-me, e questionei o que quer que me ouvisse, dias e dias a fio. Quando o cansaço se abateu sobre mim, e a desilusão por não ter encontrado qualquer resposta veio ao de cimo, soltei a pergunta para que ela pudesse voar para fora da minha mente, não pensando mais sobre isso.
Nos meses após esses tempos, já não ia ao trabalho, não respondia a telefonemas, nem abria a porta a conhecidos. Ainda tinha tentado fazer isso nas primeiras semanas, mas custava demasiado… era demasiado penoso. Deixei-me ficar por casa, a percorrer os seus cantos de vez em quando. Aos poucos e poucos deixei fugir pedaços de mim. Refugiei-me num espaço particular. Tornei-me num solitário deprimido com saudades da presença Dela. Então, em determinado ponto (que temporalmente ainda permanece indeterminável), esse espaço particular, esse o meu mundo próprio tornou-se numa ilha, rodeado por uma vastidão de coisas mas longe de tudo. Foi aí que eu vivi todo este tempo. E aí me recolhi neste meu pesar.
Quanto tempo passou!...
Agora compreendo. Retomo o meu estado consciente e ausento-me dessa ilha, retomo de novo o meu lugar. Agora, voltei de novo para o mundo.

09 e 25 de Junho de 2009; 02, 03 e 15 de Julho de 2009

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Ilha de retornos

Abri os olhos. Não a vi. Nem vi branco. Nem se quer senti aquela paz que tinha sentido anteriormente. Mas trazia as suas palavras gravadas na minha mente como tatuagens. Olhei em volta e estava em casa, deitado na cama, junto à cómoda. Como tinha vindo ali parar? Ela tinha razão, não deveria reflectir para já, pois o esforço seria em vão. Estendi a mão sem mais demoras e abri a primeira gaveta. Vi o seu batom, lenços, uma caneta e pouco mais. Não deveria ser naquela. Abri a que estava imediatamente abaixo e percorri a roupa interior dela. A certo momento senti algo mais duro por entre os tecidos. Era um papel dobrado. Seria uma mensagem dela? Seria o bilhete… o bilhete do seu fim? Hesitei. Estaria pronto para aquilo? Não queria saber. A curiosidade consumia-me, e quando me apercebi, já o tinha desdobrado.
“Lancelote,
Tomei uma decisão. Pode ser egoísta e não ser a melhor, mas é a que encontrei. Quero que saibas também que não a tomei de ânimo leve, reflecti e reflecti mas continuava a parecer-me que era a solução.
Tu não sabes isto, mas quando ias trabalhar, eu ficava vagueando com o meu corpo flácido pela casa ou pelas ruas. Nunca me dei ao trabalho de resistir ao que sentia e por isso, rendendo-me ao desânimo e à solidão, onde o teu regresso a casa era o único momento que me trazia felicidade, eu virei à esquerda numa rua e deparei-me com um triste cenário. Olhei e achei repugnante, mas continuei nessa direcção, e até me sentei perto de umas pessoas que lá estavam desanimadas como eu. Tomei conhecimento daquela verdade cruel e experimentei o sabor da ilusão, vi coisas que o meu cérebro produzira e sabia que não eram realidade, mas fazia-me sentir tão bem… E continuei a fazer isso praticamente todos os dias. Mas tu não notavas, porque me vias sempre como a mulher que amavas e que achavas atraente. Digamos que também me esforçava por encobrir aquele aspecto doentio e o cansaço que sentia quando não consumia os pós mágicos.
Agora, tendo a minha alma contaminada, não consigo viver mais assim. Estou dependente, estou viciada e não consigo fazer nada mais para lutar contra esse vício. É mais forte do que eu, controla-me, comanda-me. Não quero ser assim sabes? Quero ser mais para ti. Quero ser eu de novo. Quero estar contigo como estávamos dantes, e quero estar no mundo como a mulher viva e alegre que era dantes, mas agora não consigo alcançar isso. Acredita que não. E já tentei. Por isso, tomei esta decisão: a de buscar um novo mundo onde volte a ser eu de novo. Acho que é um mundo calmo, tranquilo, mas certezas disso nunca poderei ter. No entanto, tenho a fé que me guia.
Meu amor, eu voltar-te-ei a ver, eu sei, e quero que sejas feliz sim?
Para todos os casos, fica a saber que te amo e que peço desculpa. ”

26 de Maio de 2009; 09 de Junho de 2009; 25 de Junho de 2009
Autoria de: Sara Silva.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ilha de viagens

Depois de um gentil beijo ela diz-me, sempre do mesmo modo descontraído:
- Não chores. Sabes que eu também te amo. Porque outro motivo casaria contigo? Pela tua dureza não seria.
- Eu sei, estou um caos. Mas amoleceste o meu coração Miriam. Não te quero largar nunca. Podemos ficar assim apenas, para sempre?
- Podes ter a certeza de que eu abraçarei sempre o teu coração, as tuas vontades e objectivos, tristezas e alegrias, vitórias e derrotas, abraçarei todos os teus momentos. Abraçarei até amores e desamores. Quero que sejas feliz.
- Amores e desamores? Miriam, tu és a minha mulher. Não amo mais ninguém desta forma, nem amarei alguém assim. Tu és aquela metade que me faltava.
- Por vezes o que nos falta é um conjunto de varias peças e não somente uma metade.
- Que dizes meu amor? Que dizes? Não digas essas tontices! Eu quero ficar contigo. Quero ficar contigo aqui. És feliz aqui. Eu sou feliz aqui contigo também. Seremos felizes os dois aqui. Mas diz-me, há algo que não percebo, porquê…?
- Para quê pensar nisso? Lancelote, deixa essas reflexões para outras alturas. Quero-te dizer algo e é algo importante.
Escuto as suas palavras sábias.
- Bem, a vida é como um rio. Cada um de nós é um barquinho que navega nele. O que permitirá atravessá-lo e percorre-lo com sucesso é a estrutura do barquinho. Mesmo até os que parecem mais frágeis, mais susceptíveis a afundarem-se, podem ser feitos de madeira rija. E cada um de nós pode moldar a estrutura, mas há sempre pormenores que deverão permanecer intocáveis, talvez porque é impossível modificar tal parte ou simplesmente porque nos parece que essa parte não prejudica o barquinho na totalidade. É preciso sim ter cuidado com a bagagem que entra no barquinho, estando ele já com a estrutura moldada. Demasiado conteúdo não é bom. Pouco conteúdo também não. Apenas o necessário é que deverá entrar, senão o barquinho fica com demasiado peso. Assim, o barquinho pode enfrentar tormentas e até icebergs que não se afunda como o Titanic, e percorre o rio até lhe ser aplicada a justiça. Eu é que deixei que entrasse demasiado conteúdo.
- Que tipo de conteúdo?
- Oh meu amor, aqui há que fazer. Tenho de ir. A resposta encontra-se na gaveta da cómoda. Que engraçado eu ainda saber isto. Eu abraçar-te-ei para sempre, e sempre. Estarei sempre contigo não te esqueças, estarei do teu lado.
- Não te vás Miriam! Fica aqui comigo… Não te vás, não novamente.
- Seria bom não seria? Mas não pode ser. Ver-nos-emos de novo, algures no futuro. Tem sempre essa certeza contigo e percorre o rio como o forte barquinho que és. Eu amo-te.
Beijou-me e vi-a desaparecer, enquanto gritava e declamava o meu amor por ela e suplicava a sua presença e a eternidade deste encontro.

02 de Maio de 2009
Autoria de: Sara Silva.